It's a new day

23:54. Janela do quarto aberta, sentado no parapeito, observa as pessoas que passam na rua. Acende um cigarro, não larga ao copo, nem se levanta pois tem o colo ocupado. O sino da igreja relembra-o do fim de mais um dia. Imediatamente começa um novo dia, muito igual aos restantes de que se lembra. Já são no fundo 28 anos de dias, e tirando algumas excepções como sejam a primeira vez que foi ao cinema, que entrou para a primária, que saiu à noite, que se fez um homem, que entrou na faculdade, que se apaixonou durante meia hora, todos os dias lhe parecem um pouco como aquele, em que o calendário não é mais do que um apontamento.

Pousa o copo no parapeito. Pega na garrafa que ninguém diria que abriu nem há duas horas, e deita mais um pouco. Gosta de gelo mas a verdade é que lhe é impossível pôr-se de pé naquele momento e também não é que fosse mesmo buscar gelo, mesmo que não tivesse as mãos e o colo ocupado, a cada copo parece-lhe menos necessário. Pega num garfo que já é mais da sala do que da gaveta dos talheres e começa, como quem aperta uma bola de borracha para aliviar o stress, a tentar enfia-lo na tomada que se encontra mesmo por debaixo do parapeito, sem que veja as suas tentativas, perdido num olhar de quem há muito não tem contacto com a realidade.

Também não precisa. Contabilista licenciado, melhor da sua turma, profissional reputado, vai todos os dias para o escritório de uma empresa de renome que o contratou ainda antes de acabar o curso em piloto automático, e é desse modo que faz o seu trabalho e é do mesmo modo que lhe passa ao lado os comentários dos colegas sobre si, o olhar de soslaio que lhe atiram, cada vez com maior ferocidade perante a apatia com que lhes responde, e as preocupações do chefe que o miúdo possa ter frito um fusível. Não sabe, não soube e não teria feito grande diferença na verdade se soubesse.

Contudo tem perfeita noção que é damaged goods. Portanto quando a mãe e os poucos amigos que lhe restaram lhe ligavam, antes de desligar o telefone da ficha e mudar o número de telemovel para evitar tentativas patéticas de fazer uma intervenção à americana, onde lhe recomendavam um amigo de um conhecido lá do trabalho, que dizem que é bom a lidar com estas coisas ou um terapeuta de renome que foi à televisão no outro dia. Preferiu assim, evitar o contacto, pois nunca teve coragem de lhes dizer que sabia que aquilo não tinha conserto, que ele não passava de uma daquelas máquinas que depois de feita a manutenção pelo técnico somos relembrados que é até ao dia e depois nada a fazer, lixo.

Para além de que assumir que de facto não estava bem ou simplesmente ser honesto com o que sabe ser certo sobre si, é um pau de dois bicos que termina sempre num cenário de humilhação. E o seu orgulho era o que lhe restava, não pretende ajuda, nem que tenham pena dele. Só mesmo que o deixem estar em paz.

Serve mais uma dose, enquanto pensa que talvez só uma garrafa tenha sido pouco. Enrola um cigarro, acende, observa o fumo que lhe sai dos pulmões e a ponta do cigarro a arder no escuro.

Olha lá para baixo e balança-se no parapeito, brincando na mesma com o garfo, sem noção do que lhe tinha sido dito pelo senhorio, com um ar sinceramente mentiroso, o quanto aquelas casas antigas, apesar de muito bem restauradas, tinha de se ter cuidado, que sobretudo com o encaixe das janelas que se encontrava irremediavelmente um pouco solto, não convém que se apoie muito lá. Não ouviu também, mas seria pouco provável que essa informação o tivesse feito alterar o uso daquele ponto da casa como seu lugar de eleição desde que para ali se mudou, após a tentativa falhada de viver com a namorada.

Esvazia o que resta da garrafa, servindo claramente um duplo, enquanto se diverte, se é que ainda se pode dizer que sente qualquer tipo de sentimento positivo ou reconfortante, a pensar como é que acabou ali, no seu cantinho, sozinho.

Talvez.. talvez tenha começado com a falta de novidades, de coisas interessantes que o motivassem. Sem dúvida que foi da maior importância o quão desinteressantes as pessoas são após 2 minutos de conversa, ou pior, o como isto não muda. Nunca. Quer dizer, excepto ela. O dia em que percebeu que odiava contabilidade também teve o seu papel. Não se esquece, já que foi no seu primeiro dia de aulas, durante a apresentação do coordenador do curso. A excessiva perfeição da sua família, onde não existia um problema, onde nunca se ouviu um grito, ou mesmo alguma vez se observou um escândalo familiar ou, no fundo, alguma manifestação para lá do cordialismo que em sociedade se pede, também o influenciou por certo. Não tem essa noção, mas dos 12 aos 17, o período no qual vivia absorvido por filmes, revistas, o impacto do Verão na roupa das mulheres e os apalpões às colegas que lhe sorriam, enquanto lhe batiam e gritavam dissimulando mal o prazer que aqueles segundos de atenção lhes dava, foi talvez dos mais relaxados que teve. Infelizmente, o primeiro orgasmo, seguido do primeiro cigarro fumado, de mentol, que foi a única coisa que não pagou numa tarde passada numa pensão na Defensor de Chaves, também lhe tirou esse interesse. O facto de ser giro e inteligente, e nunca ter que verdadeiramente se esforçar para nada, decerto, não ajudou. Mas ter ouvido, quando entrava em casa, um pouco mais tarde que o habitual porque o trânsito na Marginal estava impossível, um estrondo, que segundos depois pode associar aos pedaços de cérebro e sangue espalhados na parede do quarto, acompanhados de uma nota de suícidio que o culpava pelo fim antecipado da vida da única pessoa no mundo que o mantinha ligado à realidade, será a razão que, mais tarde, foi por todos avançada para explicar como foi que chegou ao estado decadente e out of touch em que se encontrava.

Na televisão ligada começava agora as notícias da manhã. Olhou sem ver para a televisão durante alguns segundos, nos quais pegou então na arma que tinha no colo, e largando o garfo, bateu distraídamente com o cano no rebordo do copo. Bebe o que tem no copo de uma vez sem perder contacto visual com a televisão, só olhando para o colo para tirar a patilha de segurança e apontar a arma à cabeça. Mas já não conseguiu disparar. O contacto entre o vidro fino e o cano da arma foi o suficiente para fragmentar o copo e, sem que se tenha apercebido, partiu-se um bom bocado, que se crava na sua garganta e numa numa reacção espontânea de pânico o leva a mexer-se um pouco para trás com algum violência, o suficiente para parte da estrutura da janela ceder e ele cair lá em em baixo na rua, com um estrondo que foi quase imediatamente seguido de um grito de uma miuda que distraída pelo sono a caminho da escola, se assustou com a queda de um homem do 4º andar, menos de 1 metro à sua frente.

Caído no chão, surpreendido com o seu próprio fim, seria de esperar que o pânico e a dor lhe ocupassem os últimos segundos vida. Mas não, até naquele momento em que ainda se encontrava milagrosamente consciente, manteve-se aquela raiva surda que o comeu por dentro nos últimos anos de vida. Porque o que lixava, mas lixava mesmo, era não entender como foi possível nunca se ter sentido culpado.

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